De vez em quando relembro uma cena muito colorida e movimentada, que há muito não tenho visto. Céu azul de poucas nuvens.
Mar esverdeado com espuma branca, muitas gaivotas e homens de pernas nuas vestindo impermeáveis de cor de telha e com gorros afundados até as orelhas, num dia de inverno, à beira mar, no Cassino. O vento minuano, embora amainado, aumentava a sensação de frio.
O cenário começava a se armar com a chegada de um caminhão desbotado, com um barco em cima, popa para fora, conteúdo bem maior do que continente, pneus gastos e suspensão ondulante.
Vinha com um rastro de fumaça preta e o barulho da descarga corroída pela maresia de outras tantas chegadas. Trazia em seu bojo, além do barco, bóias, redes, cabos, garrafa de cana e os atores anônimos do espetáculo que se desdobraria a seguir.
Da boléia descia o mestre da parelha, veterano enrugado pelo sol e pelo sal, parecendo bem mais velho do que sua idade real. Era quem determinava o melhor ponto da praia para o arrastão do dia. Através de misteriosos parâmetros, pela experiência e pela tradição, sabia onde estava o peixe.
A atuação começava, enquanto os espectadores procuravam não atrapalhar.
A primeira grande tarefa era descer o “Deus me guie” ou seja lá que nome tivesse a grande canoa, colocá-la sobre roletes de tronco de eucalipto e levá-la , em processo cadenciado e bem treinado, até a água.
Manobra de força e arte, exigia muita sincronia para que nem popa nem proa se enterrassem na areia molhada. Empurravam-na sobre os roletes, que eram alternados com precisão, e depois de muitos gritos e imprecações faziam-na flutuar e vencer a rebentação.
A canoa corcoveava nas ondas, enquanto a bordo alguns remavam e outros esgotavam a água que entrara aos borbotões durante a refrega.
Suplantado o primeiro obstáculo, passavam a largar a rede, descrevendo um enorme semicírculo, mar adentro, envolvendo o esperado cardume.
Uma das pontas da rede ficava presa a um cabo que por sua vez ficava em terra.
Completavam o semicirculo trazendo para a praia outro cabo, também preso à rede.
Bóias na parte de cima e pesos de chumbo na parte de baixo ajudavam a armá-la.
A canoa voltava ao seco, no mesmo processo de rolagem.
Vinha então a terceira etapa.
Trazer o peixe preso nas malhas.
Agora os malabaristas e mágicos se transformavam em atletas e passavam a recolher a rede.
Alguns espectadores mais afoitos ajudavam nesta parte.Lembro de ter participado e posso testemunhar o esforço exigido.
Músculos retesados e corpo inclinado quase até a horizontal, puxava-se o cabo, ao qual nos prendíamos por cinturões e usávamos o peso do corpo, para exercer a força necessária. Cada um percorria vários metros nesta posição e depois voltava até a beira mar, retomando o mesmo trabalho. Lentamente a rede chegava à praia. No mar já se entreviam reflexos prateados de peixes encurralados e as gaivotas, em grande numero, voando e mergulhando, alvoroçadas pela presa fácil.
Chegava, então, o fruto de tanto esforço.
A rede era estendida na praia, sacudida e o peixe selecionado. Cações, papa-terras, cascudas, peixes-rei, tainhas, arraias, muitos siris e águas-vivas, grandes e miúdos, faziam brilhar os olhos dos pescadores. Fora farta a pescaria. Começava a interação com os outros espectadores.Tanto os curiosos como as gaivotas ganhavam seu peixinho. E o caminhão frigorífico, recém chegado, recolhia a produção comerciável.
Os artistas colocavam a canoa em seu veiculo e partiam para outras lides e o publico se dispersava.
Era um arrastão de inverno na praia do Cassino. Dá saudade do tempo de peixe farto e da força que tinha então para ajudar na puxada de cabo.